sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Entrevista com a Médica de Família e Comunidade Marcela

Essa é uma prévia da entrevista concedida pela MFC Marcela Dohms da área 331 à um revista que tratou sobre o tema da Estratégia Saúde da Família.

1) Em primeiro lugar, gostaria de saber um pouco sobre a sua atuaçãoprofissional. Qual é a sua especialidade e como é – ou foi – a suaatuação/participação na unidade de saúde Saco Grande em Florianópolis?

Sou médica, especialista em Medicina de Família e Comunidade. Trabalho em uma equipe da Estratégia Saúde da Família, no centro de Saúde Saco Grande, em Florianópolis.Trabalho nessa equipe há 3 anos.

2) Como é o trabalho de Saúde da Família feito nessa unidade?

Na Unidade de Saúde em que eu trabalho funciona assim: cada conjunto de ruas do bairro (chamamos de área) tem uma equipe responsável, que cuida dessas pessoas da sua área. Cada equipe é composta por 1 médico, 1 enfermeiro, 1 cirurgião-dentista (algumas equipes têm o auxiliar ou técnico de higiene dental), 1 a 2 técnicos de enfermagem e  alguns Agentes Comunitários de Saúde, que são pessoas que moram no bairro e fazem o elo com a comunidade. Há também alguns técnicos administrativos e estudantes de vários cursos, como Medicina, Odontologia e Enfermagem, que fazem estágio na unidade, além de profissionais já formados, que estão se especializando em Saúde da Família ou Medicina de família e comunidade.
Os profissionais de todas as equipes (médico, enfermeiro e dentista) fazem uma parte do seu horário em atendimentos individuais e outra parte em atividades de grupo, atividades em escolas e creches do bairro, em visitas domiciliares para as pessoas que precisam e se reúnem semanalmente para planejar essas ações em equipe


Nessa unidade valorizamos muito o trabalho com grupos, por isso temos vários e que ocorrem há bastante tempo. Há grupos para gestantes, idosos, hipertensos e diabéticos, de trabalho manual com mulheres, grupo de relaxamento, de caminhada, de psicoterapia, de planejamento familiar, de crianças, saúde bucal, para fumantes, entre outros...


3) Como se dá a atuação do médico?

Como médica de uma equipe Saúde da Família, acompanho as pessoas que moram nas determinadas ruas do bairro que sou responsável, ou seja, minha área de abrangência. Assim, acompanho a família toda, desde as crianças, gestantes, adultos e idosos. Então, por exemplo, faço o pré-natal da grávida, depois quando nasce o bebê cuido da criança e ao mesmo tempo oriento método anticoncepcional para essa mãe, trato da diabetes da avó que mora junto e da pressão alta do pai. Acompanhar a família toda possibilita conhecer muito melhor as suas necessidades e entender seus problemas e a melhor maneira de ajudar. 

O médico de família e comunidade não pretende resolver todos os problemas sozinho. Atuamos em equipe e, quando é necessário, encaminhamos para outros profissionais, realizamos interconsultas ou discutimos os casos com outros especialistas.  Mas a grande maioria dos problemas são resolvidos na própria Unidade de Saúde, o que é muito bom para as pessoas, que não ficam “pulando” de médico em médico e têm um atendimento mais integral do seu problema de saúde. Por exemplo, muitas vezes a pessoa vai a vários especialistas e acaba fazendo exames desnecessários e medicações que talvez não precisasse e que até podem fazer mal á sua saúde, ou usando o mesmo medicamento, mas com nomes diferentes prescritos por médicos distintos, sem nem perceber.  Nesses casos, o médico de família poderia evitar isso com uma abordagem integral e com a coordenação do cuidado. Os especialistas das outras áreas ficam com os casos mais específicos e por tempo delimitado, que realmente precisam da especialidade. Como acompanhamos as mesmas pessoas e por bastante tempo, é possível fazer uma abordagem assim, por conhecer bem seu contexto de vida e porque as pessoas criam confiança no profissional, sabem que podem se abrir e contar com ele.


4) Quais são os principais destaques desse trabalho na unidade?

    Acredito que um dos principais pontos para o trabalho se desenvolver bem é a equipe estar motivada, envolvida e comprometida com os objetivos da estratégia Saúde da Família. E isso, posso dizer que vejo nos profissionais da unidade em que trabalho. Com uma equipe boa e motivada fica bem mais fácil enfrentar as dificuldades. O trabalho em equipe é fundamental. Acho que isto se deve também á coordenação da unidade, que procura ser democrática, participativa e sabe dar liberdade para as equipes usarem a criatividade no dia-dia.

    Um diferencial importante nessa unidade de saúde é o atendimento para aquelas pessoas que precisam, por algum motivo, de atendimento no mesmo dia. Procuramos organizar o atendimento de forma que na maior parte das vezes que a pessoa procura um atendimento, tanto agendado ou não, que a pessoa possa ser atendida pela sua equipe de referência, para fortalecer o vínculo com os profissionais. Há horários destinados as pessoas que precisam de consulta no dia no período da manhã, tarde e noite. Como não temos pronto-atendimento próximo á unidade, contamos com profissionais em equipe de apoio para o atendimento aos casos que excederem a capacidade de atendimento da equipe. Algumas equipes oferecem atendimento agendado á noite, o que facilita para as pessoas que trabalham durante o dia e não precisam faltar o serviço.


    Um diferencial é o sistema de marcação de consultas, que podem ser agendadas semanalmente para a semana seguinte, com a própria equipe, que busca facilitar o acesso se colocando disponível no período de marcação.
    Outro destaque é a participação dos moradores, através do Conselho Local de Saúde, que é bastante atuante no bairro. Há ainda uma brinquedoteca, onde as crianças podem ficar brincando e sendo supervisionadas enquanto os pais estão em alguma atividade na unidade. Há uma preocupação com a sala de espera, por isso temos livros doados á disposição das pessoas e programamos mensalmente semanas temáticas de exposição de algum tema relacionado á saúde.


5) O que essas ações e destaques trouxeram de benefícios para a comunidade local?

Percebemos que as pessoas realmente têm a unidade como um local de referência para seus problemas de saúde. Quando precisam de algum atendimento procuram primeiro a unidade de saúde, porque sabem que terão algum tipo de ajuda. O vínculo e a confiança da comunidade com a equipe trazem maior tranqüilidade e satisfação para as pessoas do bairro. Percebemos que o trabalho com grupo ajuda no muito na construção de redes de apoio na comunidade, que é um grande problema atualmente e que está relacionado com o sofrimento de muitas pessoas.

6) Quantas pessoas – em média – são atendidas nessa unidade de saúde?

A população aproximada da área de abrangência da unidade é 15 mil pessoas e a unidade realiza cerca de 3.000 atendimentos por mês.

7) Existe algum estudo – com números – sobre a melhora nos aspectos de saúde dessa comunidade? (ex. redução da mortalidade infantil, incidência
de alguns tipos de doenças, etc). Poderia destacar os principais números encontrados?

  
È difícil avaliar índices epidemiológicos numa população pequena, por isso não temos muitos dados sobre isso. É até uma questão que deve ser estimulada pelas equipes, estar se avaliando. Ás vezes ficamos só atendendo a demanda e esquecemos de planejar e avaliar o que fazemos. Mas sei que no nosso município, em que grande parte da população pode ter acesso á equipes de Saúde da Família, a taxa de mortalidade está diminuindo bastante, assim como as taxas de internações por doenças que podem ser preveníveis na Atenção Primária.

Analisamos nossos índices de encaminhamento e percebemos que está bem abaixo da média. Ou seja, realmente a grande maioria dos problemas de saúde da população são esolvidos na própria Unidade de Saúde.
    Vemos que os grupos melhoram a adesão terapêutica e diminuem o uso de medicações desnecessárias. Um exemplo é um dos grupos que participo, que é voltado para pessoas que usam medicamentos controlados. Após 2 anos e meio de grupo, todos conseguiram diminuir o uso de benzodiazepínicos ou parar totalmente.
 

Ainda precisamos de mais tempo para nos dedicar a analisar e quantificar as melhorias do nosso trabalho.

8) Quais são os principais desafios e dificuldades de se implantar um
sistema de Saúde da Família numa unidade de saúde?


Acredito que um dos principais problemas de muitos locais do Brasil é a quantidade de pessoas por equipe de Saúde da Família. Se o número for muito acima do preconizado não tem com fazer um trabalho de qualidade. E é preciso considerar não só o número, mas também os indicadores sócio-econômicos. E em outros países, como nos da Europa Ocidental, cada médico é responsável por uma quantidade bem menor de pessoas.
 

É claro que os desafios ainda são muitos. No caso do bairro em que atuo, nos preocupamos com a situação de trabalho dessas pessoas que vivem numa periferia urbana em permanente crescimento não-planejado, com condições socioeconômicas desfavoráveis e, o desafio de lidar com o contexto cada vez mais comum de abuso de drogas, onde destaca-se o crack, a grande procura de atendimento por sofrimento psíquico e o aumento da violência. Soma-se a isso a idéia da solução mágica nas medicações e exames.

Observamos a necessidade de se consolidar uma rede de atenção à saúde com referência e contra-referência eficiente, com planejamento conjunto e a necessidade de avanço com os núcleos de apoio as equipes Saúde da Família (NASF), com um número adequado por equipes.
 

Temos ainda o problema da grande rotatividade dos profissionais nas equipes, geralmente por más condições de trabalho ou falta de capacitação adequada. Para isso, é preciso investir mais em formação de recursos humanos voltados para a Atenção Primária. E para finalizar, há também a necessidade de transformar o imaginário que as pessoas têm do SUS, buscando sua valorização e consolidação como conquista a ser defendida pela população brasileira.

9) No caso dessa unidade, comprova-se a tendência de melhor
funcionamento dos programas de saúde da família fora dos grandes centros urbanos, ou em regiões mais pobres?


Acredito que não é possível afirmar isso. Vejo a proposta da Estratégia Saúde da família como uma proposta de consolidação da Atenção Primária á Saúde e do sistema público de saúde, voltado a todos os brasileiros. Por isso, é preciso entender a realidade local e suas diferentes complexidades. Recentemente saiu um artigo de uma colega que escreve sobre uma pesquisa que mostra que há melhores indicadores com a estratégia Saúde da Família nas cidades de pequeno porte. Acho que a questão é a necessidade de implantação de formas diferenciadas conforme o contexto.

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